Sonhar a Páscoa, viver a Quaresma
Sabemos a que horas o Príncipe dos príncipes e Senhor dos senhores deixa as regiões da morte e vem animar o coração da Humanidade e da Criação com a Festa da sua Páscoa. Este ano, precisamente a 24 de abril. É por isso que estamos a viver o “ritual” da Quaresma, que “faz com que um dia seja diferente dos outros dias e uma hora, diferente das outras horas” – segundo a experiente explicação dada pela raposa ao Principezinho.
Para além do “jejum corporal”
Francisco de Assis, o Sonhador de uma Páscoa sem fim para todos, sentiu a necessidade interior de “arranjar o seu coração, de vesti-lo, de o pôr bonito” por uma série de Quaresmas. Quem ler a Segunda Regra que ele escreveu, ficará um tanto perplexo com as suas palavras:
«E jejuem os irmãos desde a Festa de Todos os Santos até ao Natal do Senhor. Mas a santa Quaresma que começa na Epifania e se estende por quarenta dias contínuos, a qual o Senhor com o seu santo jejum consagrou (Mt 4,2), os que voluntariamente a jejuam, sejam benditos do Senhor, e os que a não quiserem jejuar, não sejam obrigados; mas jejuem a outra Quaresma até à Ressurreição do Senhor. E não têm os irmãos obrigação de jejuar noutros dias, a não ser à sexta-feira. Mas quando houver manifesta necessidade, não sejam obrigados a jejum corporal» (cap. 4).
Destaco alguns pormenores do texto, dignos de registrar:
- A insistência na palavra / realidade “irmãos”;
- As várias Quaresmas na Fraternidade Franciscana;
- O respeito pela liberdade pessoal;
- A abertura de horizontes, para além do “jejum corporal”…
As várias “Quaresmas” de S. Francisco de Assis
São Francisco fala de três Quaresmas. Mas ele ainda viveu e propôs outras. Seis ao todo:
- A Quaresma da Epifania ou “Santa”, porque vivida e “santificada” pelo Senhor Jesus (7 de Janeiro a 15 de Fevereiro);
- A Quaresma da Ressurreição do Senhor (de Quarta-feira de Cinzas até a Páscoa);
- A Quaresma de São Pedro e São Paulo, como manifestação de amor à santa Igreja (de 20 de Maio a 29 de Junho);
- A Quaresma da Assunção de Nossa Senhora (de 29 de Junho a 15 de Agosto);
- A Quaresma de São Miguel Arcanjo (de 15 de Agosto a 25 de Setembro); e
- A Quaresma do Advento ou da Encarnação (da Festa de Todos os Santos até ao Natal) do Senhor.
Vivência, mais do que penitência
Qual o espírito que animava o Santo de Assis nestes “tempos fortes”?
Não tanto de penitência, mas de vivência do mistério a celebrar:
- Do mistério de Cristo, unindo o Cristo da Encarnação e o Cristo da Paixão.
- Do mistério de Maria, “Virgem convertida em Igreja”.
- Do mistério dos Anjos e dos Santos, nossos intercessores e modelos de santidade.
O seu objetivo não era o afastamento, mas a comunhão. Por isso, o resultado traduz-se não tanto na austeridade de vida, mas na solidariedade e na partilha com todas as pessoas e criaturas. Sempre a partir da solidariedade com Jesus Cristo Crucificado, com quem, durante uma delas, ficou bem identificado interna e externamente ao receber, a 14 ou 15 de Setembro de 1224, as cinco Chagas impressas no seu corpo.
As motivações do Santo
São Boaventura, biógrafo e intérprete espiritual de Francisco, deixou-nos as motivações profundas dessas Quaresmas:
A imagem de Jesus Cristo Crucificado nunca lhe saía do espírito, como o ramalhete de mirra da Esposa dos Cânticos; e na veemência do seu amor extático suspirava por transformar-se inteiramente em Cristo Crucificado.
Uma das suas devoções particulares consistia em se recolher à solidão durante os quarenta dias que se seguiam à Epifania, correspondentes àqueles que Cristo passou no deserto recolhido na sua cela, reduzindo ao mínimo a comida e a bebida, dedicava-se sem interrupção ao jejum, à oração e aos louvores do Senhor. Consagrava a Cristo um amor tão vivo, e o Bem-amado, em troca, mostrava para com ele uma ternura tão familiar, que o servo de Deus parecia sentir fisicamente diante dos olhos a presença contínua do Salvador, como por várias vezes confidenciou a companheiros. […]
Dedicava um amor indizível à Mãe de Jesus, por ter sido ela que nos deu por irmão o Senhor da majestade, e por meio dela termos alcançado misericórdia. Depois de Cristo, era nela que depositava mais confiança, e por isso a escolheu como padroeira para si e para os seus, e em sua honra jejuava com grande fervor desde a festa de S. Pedro e S. Paulo até a Assunção.
Também se sentia ligado por indissolúveis laços de amor aos espíritos angélicos, cujo ardor maravilhoso os lança em êxtase diante de Deus e inflama as almas dos eleitos. Por devoção para com eles fazia uma Quaresma de jejum e oração durante os quarenta dias que se seguem à Assunção da Virgem gloriosa. “Ao Arcanjo S. Miguel especialmente, por ser ele o encarregado de fazer a apresentação das almas no céu, dedicava uma particular devoção, em virtude do zelo que o devorava em salvar todos os homens” (SÃO BOAVENTURA: Legenda Maior, cap. IX, nº 2 e 3)
Destaquemos o início e o final do texto Jesus Cristo Crucificado – princípio e motor de toda a vida, oração e ação de Francisco; e salvar todos os homens – suprema aspiração deste missionário apaixonado de Cristo e da Humanidade. Só com estes dois pólos se entende a sua aventura revolucionária. Sem amor a Cristo e a todos os homens e mulheres, não se entende nenhuma das seis Quaresmas vividas por Francisco de Assis! Como tão-pouco se entende a Quaresma que nos é concedida para viver, mais uma vez, como “o tempo favorável” e “o dia de salvação”.
Para a nossa Quaresma
As motivações de Francisco, na vivência das suas Quaresmas, foram as mesmas que o Povo de Deus do Antigo Testamento foi descobrindo para selar uma Aliança com o Deus Libertador;
- As mesmas que Jesus viveu e apresentou no Sermão da Montanha (ver Mt 6,1-18);
- As mesmas que a Igreja nos propõe: esmola – como descoberta da partilha e solidariedade com os pobres; oração – como intimidade com o Deus do Amor total e da Vida em abundância; jejum – como ideal de uma vida simples e respeitadora da Criação.
Nesta Quaresma, procuremos:
Ler, com calma, o Evangelho de Jesus Cristo segundo São Marcos, como quem saboreia as palavras do Senhor;
- Embrenhar-nos no ‘Ofício da Paixão’, composto por Francisco de Assis para seguir no dia-a-dia os passos de Jesus Cristo, uma espécie de “via-sacra” antecipada (ver Fontes Franciscanas).
Tudo isto, para:
- “arranjar o coração”, extirpando todo o vírus, corrupção e violência;
- “vesti-lo” com os sentimentos de serviço e misericórdia que havia em Cristo Jesus; e
- “pô-lo bonito”, com a beleza que nos vem da Páscoa florida do Ressuscitado.
Frei Acílio Mendes, OFMCap
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