Os Milagres de São Luís
O
estudo dos milagres de São Luís dá de sua santidade uma imagem muito mais
tradicional. São essencialmente milagres
de cura, milagres do corpo. Mas essa santidade,
taumatúrgica, só se manifesta depois da morte do rei, conformando-se às
prescrições de Inocêncio III, que reconhecia como válidos __ a fim de evitar os
milagres ilusórios dos pseudoprofetas, dos falsos santos operando em vida __ só
os milagres consumados depois da morte.
Luís ainda aqui se mostra um santo muito ortodoxo, um santo que obedece
às prescrições da igreja. É preciso ver
esses milagres de perto.
Um
santo cristão se define pela qualidade de sua vida e pelos milagres. O exame dos milagres de São Luís relatados
nos anos que precedem ou que se seguem à sua canonização e no momento da canonização
deve esclarecer uma dupla questão: que importância tiveram os milagres na
canonização de São Luís?
Qual
foi o balanço entre sua vida e suas virtudes, de um lado, e suas ações milagrosas,
de outro? São Luís foi original em seus
milagres?
Os
sessenta e cinco milagres do corpus
oficial permitem determinar os tempos, os lugares em que se produziram, as
pessoas que deles se beneficiaram, a natureza desses milagres.
Primeiro
fato essencial, portanto: todos os milagres de São Luís se deram depois de sua
morte. Os biógrafos chamam sempre a
atenção para isso. Geoffrov de Beaulieu
já indicava que os milagres se seguiram ao sepultamento dos ossos em
Saint-Denis: Sepultis igitur ossibus
sacrosanctis divina non defueremagnalia; sed mox mirificavit Dominus sanctum
suum
[...]. Guillaume de Chartres, que
compara o defunto rei ao sol, “um novo sol se levantou no Ocidente” (sol
novus ortus in partibus Occidentis), afirma que “depois
de se pôr”, quer dizer, depois da morte, ele “continuou a brilhar graças à luz
de seus milagres” (post occasum etiam lucere non desinens
miraculorum evidentium claritate). E na bula de canonização de 11 de agosto de
1297, Bonifácio VIII afirma que o Cristo quis que depois da morte o santo rei “brilhasse
pela multiplicidade de seus milagres como tinha resplendido(em vida) pelos
incontáveis méritos”.
...
Com
essa possível exceção, os milagres esperaram pela morte do rei. Mas então se multiplicam. Começam no caminho da volta dos restos
mortais do rei de Túnis para Paris e Saint-Denis. Jean de Vignay assinala até,
já o vimos, dois milagres havidos na Sicília durante o transporte do coração e
das entranhas do rei reclamadas por seu irmão Carlos d’Anjou para seu mosteiro
de Monreale. A lista oficial assinala
dois milagres registrados na passagem da ossada do rei pelo norte da Itália, em
Parma e em Reggio nell’Emilia (milagres 64 e 65 de Guillaume de Sint-Pathus). Outro milagre houve na entrada da ossada do
rei em Paris (milagre 46). A narrativa
de Guillaume de Saint-Pathus é notavelmente viva:
Quando se anunciou em Paris, na primavera
de 1271, a chegada do rei Felipe III trazendo os ossos de seu pai de Túnis, os
burgueses de Paris iam adiante do cortejo, e, na vanguarda, os artesões de
tecidos [mais de trezentos, segundo Guillaume de Saint-Pathus] que pretendiam
se queixar ao novo rei de um erro que os prejudicara a propósito de uma
determinação de local perto da Porta de Bauddroyer. O grupo vai esperar o cortejo junto ao olmo
de Bonnel [Bonneuil-sur-Marne] pra além de Cristreu [Créteil]. Lá encontram uma mulher que dizia ter vindo da
Borgonha com o filho, um menino de cerca de 8 anos, mortificado por um tumor __
do tamanho de um ovo de gansa __ sob a orelha esquerda. Numerosos santos dos santuários aos quais ela
tinha ido em peregrinação (em particular o santuário de Saint-Éloi-de-Ferrière)
e numerosos médicos se tinham revelado impotentes. Quando o cortejo chega, a mulher pede aos que
conduzem os dois cavalos que carregam a urna com os nossos de São Luís, a cuja
passagem todos se ajoelham, que parem para que o menino possa tocar a urna com
a parte doente de seu corpo. Um dos
condutores carregava suavemente o menino e faz com que toque a urna com aquela
protuberância. O inchaço logo arrebenta,
muita”imundície”sai dele e corre sobre o peito e as roupas do menino que não
mostra nenhum sinal de dor. Todas as
pessoas presentes gritam diante do milagre e louvam os méritos do abençoado São
Luís. Muitos choram de alegria. Um bispo, que estava próximo, afirma que
aquele não tinha sido o primeiro milagre feito por São Luís na viagem.
Mas
é claro que o essencial se passa em Saint-Denis, junto do túmulo.
A
evocação dos bandos de doentes, de inválidos, de estropiados, de mendigos se
comprimindo em volta do túmulo, tocando-o, deitando por cima dele (porque ainda
não se tinha esculpido a “imagem real”), é pungente. A menção da pedra que se
raspa e da qual se engole o pó mostra que pouca coisa mudou nas crenças e
práticas desde os tempos merovíngios, desde São Gregório de Tours.
Dos
sessenta e quatro milagre listados por Guillaume de Saint-Pathus, cinquenta e
três foram curas em Saint-Denis, cinco dos quais de doentes cujo estado impedia
a ida a Saint-Denis e que prometeram ir à abadia se São Luís os curasse e
cumpriram a promessa, em dois casos o milagre teve lugar em Chaalis e em Paris
através do efeito de uma relíquia de São Luís (um manto e um chapéu que o rei
tinha usado), uma criança morreu e foi ressuscitada (milagre 19) pela oferenda
de uma vela diante do túmulo do rei; num outro caso, uma simples invocação a
São Luís foi suficiente (milagre 52): fê-la um castelão de Aigues-Mortes, de
volta de Saint-Denis, que por pouco não se afoga no Saona. A esses é preciso juntar os dois milagres da
Itália e o que se deu às portas de Paris.
Apesar
da esmagadora localização dos milagres em Saint-Denis (mais de quatro quintos
do total), a maioria dos biógrafos de São Luís indica que os milagres tiveram
lugar em Saint-Denis ou alhures,
sem dúvida para obedecer à tendência para a deslocalização
dos milagres sensível no século XIII.
Quanto
ao domicílio dos beneficiários dos milagres __ com exceção dos dois italianos (milagres
64 e 65), do castelão de Aigues-Mortes (milagres 61 e 62) e do menino vindo da
Borgonha às portas de Paris para a chegada da ossada do rei (milagre 56), assim
como o de um jovem roceiro do Jura que seguiu o cortejo fúnebre real desde Lyon
(milagre 15) __ o domicílio, dizíamos, é Saint-Denis, Paris, Île-de-França, até
os limites da Normandia e de Artois.
Todos
os milagres, com exceção de um único (milagre 46, secagem de três celeiros
parisienses), dizem respeito a pessoas curadas de deformidades ou de doenças ou
salvas em perigo de morte. Referem-se,
em partes quase iguais, aos homens (vinte e três) e às mulheres (vinte). Da mesma forma, entre vinte crianças e
adolescentes, há onze do sexo masculino e nove do feminino. Uma forte maioria dos beneficiários é de
gente modesta ou pobre, cinquenta sobre sessenta e três, o resto se repartindo
entre sete pessoas da Igreja (um cônego, dois padres, um monge cisterciense,
duas irmãs da casa das Filles-Dieu de Paris e uma irmã conversa), três
burgueses, cinco nobres (um castelão, três cavaleiros, uma damoiselle).
Chama-se a atenção freqüentemente para o fato de que se trata de preferência de
pessoas que trabalham com as mãos ou que estão mergulhadas na pobreza ou mesmo
na mendicância. Às vezes até se sublinha
que a cura lhes permitiu escapar à indigência.
Fica
bem clara aqui a função social do milagre: manter a esperança entre os mais
desfavorecidos, ocupar o lugar daquilo que o seguro social e a loteria
representariam hoje.
Os
milagres se referem quase todos, já foi dito, ao estado físico.
...
Mas
o que os biógrafos sublinham é que os milagres consumados pela intermediação de
São Luís depois de sua morte foram não só grandes e numerosos, mas
variados. Na bula de canonização,
Bonifácio VIII fala da diversitas miraculorum
[“diversidade dos milagres”] do santo rei.
Assim como, em verdade, Luís IX vivo era dotado de um poder taumatúrgico
estreitamente especializado, a cura de uma única doença, as escrófulas (adenite
tuberculosa), do mesmo modo foi muito cedo reconhecido como um desses grandes
santos cujo poder não se restringia a um tipo de milagre consumado em um
santuário particular, mas se exercia sobre todos os males para os quais se
podia solicitar sua intercessão junto a Deus.
Não se manifestou só no túmulo de Saint-Denis, mas também “alhures”. A lista dos milagres conservados pela cúria
romana é então um verdadeiro inventário dos milagres considerados “grandes” no
fim do século XIII.
...
Se
bem que, de acordo com alguns historiadores, a proporção das “vítimas de
contração” diminuiu entre os beneficiários de milagres do século XIII, se
adicionarmos a esse item das vítimas de contração os arqueados ou curvados, os
coxos, os que são chamados paralíticos (entre os quais parece haver muitos
epiléticos __ a epilepsia é o mal Saint-Leu
[doença de São Lobo] __ ou pessoas atacadas pela doença de Parkinson), em
resumo, todos aqueles que têm problemas de locomoção, essa categoria se torna a
mais importante entre os relacionados oficialmente na lista dos milagres de São
Luís. O modelo dos infelizes que ele
curou parece ser aquele (ou aquela) que chega muito penosamente a Saint-Denis com algum tipo de apoio, quer
dizer, e muletas, porque perdeu o pé, uma perna, as coxas, e não poderia
dispensar as muletas. Cura espetacular,
objetivamente contestável e que restitui a natureza e as potencialidades a um
ser humano profundamente diminuído pela enfermidade e condenado a viver à custa
de outrem, dos seus, de um hospital, de doadores de esmolas. Agora ele poderá se locomover, ser ereto, ser
independente, trabalhar.
Milagres
da devolução da dignidade humana mais ainda do que da cura de um sofrimento.
Uma
outra categoria importante tem seu peso: todos os que são curados de uma doença
produtora de deformidade e de sujeira, de pus e de “imundice”: fístulas,
apostemas (abcessos), gânglios, chagas etc., todas essas doenças purulentas e
fétidas, doenças que incham ou esburacam, cujas vítimas Piero Camporesi evocou magnificamente
em bandos trágicos na Itália dos séculos
XVI e XVII. A ele também, o milagre devolve a integridade do corpo, senão a
beleza; a limpeza, senão o brilho, um contato normal com os que o cercam.
Definitivamente,
São Luís nada tem de excepcional em seus milagres. Realizou aqueles que no fim do século XIII se
esperavam de um grande santo, fosse de origem leiga ou eclesiástica, rei ou
monge. Através de seus milagres ele é,
como se disse de um outro santo, seu sobrinho, São Luís d’Anjou, um santo como
os outros.
São Luís Biografia Pág. 747 a 755 – Jacques Le Goff, Editora Record, 1999.
Imagem pertencente a OFS - Fraternidade do Sagrado Coração de Petrópolis/RJ.
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