Um Santo Leigo
Imagem pertencente a Fraternidade da OFS
de Nossa Senhora Aparecida - Nilópolis/RJ.
Se
se procurar agora definir a santidade de São Luís, é preciso não perder de
vista que a originalidade mais fortemente sentida pelos contemporâneos é a de
um santo leigo, categoria rara na Idade Média.
São Luís é um rei santo leigo posterior à reforma gregoriana, que distinguiu
bem clérigos e leigos. Por mais leigos
que fossem, os santos reis dos séculos precedentes eram leigos misturados com a
sacralidade sacerdotal. Se um rei da
França do século XIII conserva e até aumenta, acabamos de ver, um certo caráter
sagrado __ reconhecido, não sem alguma reticência, pela Igreja e de qualquer
maneira por aquilo que se pode chamar de opinião comum __, não é mais o rex sacerdos (“rei sacerdote”) que os imperadores e, à imagem deles, os reis
mais ou menos tinham tido, precedentemente.
Um Joinville, leigo ele próprio, chama bem a atenção para o caráter
excepcional do santo leigo Luís.
Esse santo manifesta seu laicismo especialmente em três
domínios: a sexualidade, a guerra e a política.
A sexualidade
define fundamentalmente desde a reforma gregoriana a separação entre clérigos e
leigos. Os hagiógrafos de São Luís, em
particular os confessores, dão importância, em consequência, à perfeição de São
Luís em matéria de sexualidade conjugal, aquela que exprime a própria condição dos
leigos. São Luís e a rainha Margarida
(porque para a Igreja o casamento e a prática sexual dele decorrente
fundamentam-se no consentimento mútuo de esposo e esposa) não apenas respeitam
os períodos de proibição das relações sexuais normalmente lícitas __ as
relações entre marido e mulher __, o “tempo de resguardo”, mas acrescentam
tempos suplementares de continência.
Luís foi um paladino, um herói da sexualidade conjugal. É um aspecto de sua santidade.
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Luís é também um
santo cavaleiro, um
santo guerreiro.
Conheceríamos mal esse aspecto de sua personalidade e de sua vida se
tivéssemos só as hagiografias de pessoas da Igreja. Joinville é que deu valor a isso. O rei aplica as duas grandes regras da guerra
cristã, da guerra justa, da guerra lícita.
Diante dos Infiéis, é o modelo de guerra santa. A pesar da recusa da Igreja oficial de fazê-lo
um santo mártir, ele é um dos raros santos da cruzada. Jean Richard e William Chester Jordan, que
estudaram tão bem a fascinação que a cruzada exercia sobre São Luís, talvez não
tenham visto tão bem o santo cruzado em Luís IX. Diante dos príncipes cristãos,
a regra é não ser nunca o agressor e procurar a paz justa. Ainda aqui, São Luís é um modelo. É um pacificador, com o risco de ser
condenado por fraqueza pelo seu pessoal mais próximo diante do rei de Aragão e
sobretudo diante do rei da Inglaterra.
Mas ele também sabe ser um santo da paz, servindo de modo total os
interesses da monarquia francesa, por exemplo, ao ligar, como ele próprio
sublinhou, o rei da Inglaterra ao rei de França pela obrigação daquele de prestar-lhe
homenagem.
Em política,
ele quis ser o rei cristão ideal. Donde,
para compreender sua santidade de um ponto de vista ideológico, a importância
não só de seus Ensi-namentos, mas dos
cinco Espelhos dos Príncipes redigidos no seu reinado a seu pedido, em sua
intenção ou na de seus próximos, sobretudo o Eruditio regum et principum do franciscano Gilbert de Tournai (1259).
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Na medida em que a santidade política do rei no governo
do reino e a atitude do rei em relação aos seus súditos sofreu a influência dos
Espelhos do Príncipe, a santidade de Luís traz a marca do renascimento do
século XII, incluída aí a teoria orgânica da sociedade que faz do rei a cabeça
de um corpus, de um corpo político.
Quanto à grande opus politicum, o grande tratado político
do qual Vincent de Beauvais só tinha redigido o De morali principis
institutione e o De erdutione
filiorum nobilium, devia definir a conduta do príncipe, de seus
conselheiros, de seus oficiais no que concerne a “a honestidade da vida e a
salvação da alma”.
Estamos aqui, talvez mais ainda do que em outros Espelhos
dos Príncipes, em um domínio comum ao rei ideal e ao rei santo no sentido do
século XIII, se bem que Vincent de Beauvais se refira também aos autores
carolíngios de Espelhos dos Príncipes, ao Policraticus
de João de Salisbury e ao De constituendo
rege (“Sobre a instituição real”) do cisterciense Hélinand de Froidmont, que
ele inclui em sua Crônica (Chronicon,
livro XI). Vincent dá também Carlos
Magno como exemplo ao rei e esse tratado se liga ao grande movimento capetiano do reditus ad stirpem Karoli, do qual
vimos para importância para Filipe Augusto, Luís VIII e o próprio Luís IX.
O tema pertinente aqui parece-me que é o do rex imago Trinitatis (o “rei imagem da Trindade”),
variante do tema do rei “imagem de Deus” __ estrutura trifuncional diferente da
trifuncionalidade indo-européia, mas não sem relações com ela.
Vincent atribui ao rei uma virtude, virtus, que se manifesta por três atributos: o poder, a sabedoria e
a bondade. O “poder” (potentia) é considerado por Vincent
segundo a teoria pessimista da origem do poder real como usurpação, na linha de
Caim e de Nemrod, que é a tese de Jean de Meung no Roman de La Rose. Mas ele o
legitima graças à necessidade de reprimir o mal introduzido na sociedade pela “corrupção
da natureza”, o pecado original. Entretanto,
o rei que usa de seu poder “retamente” pode e deve controlá-lo por um segundo
atributo a “sabedoria” (sapientia),
que evita a transformação de seu poder em tirania. Essa sabedoria inclui o bom emprego da
guerra, faz com que escolha bem seus amigos, seus conselheiros e seus oficiais,
e o obriga a instruir-se nas letras sagradas e profanas. Um terceiro atributo coroa essa Trindade da
virtude real, a “bondade” (bonitas),
porque o príncipe deve “ultrapassar em bondade todos aqueles que deve governar”. Deve chegar a isso guardando-se da inveja, da
lisonja e da adulação. A bondade
aproxima o “bom” rei da santidade.
Em São Luís, o indivíduo e seus modelos ideais são
historicamente um. Estudar os modelos de
sua santidade é então, já se viu, estudar o “verdadeiro” São Luís.
São Luís Biografia Pág. 742 a 745 – Jacques Le
Goff, Editora Record, 1999.
São Luis de quê?
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