Por que vês o cisco no olho de teu irmão, e não vês a trave no teu? Mt 7,3.
Foto: Assis - Itália 2012
1. VER: um dos
grandes dons de Deus é o dom da visão. A
capacidade de captar as ores e os quadros que elas compõem, os movimentos, os
vultos, as pessoas. Não vemos apenas o
palpável, o concreto. Vemos também o
invisível, o que se esconde sob as aparências.
E, aqui, Nosso Senhor nos chama atenção para uma das nossas capacidades:
ver os defeitos dos outros, perceber os passos errados que eles dão, analisar
os gestos e ações e ações que produzem, observar os deslizes que lhes
acontecem, suas falhas de comportamento.
Temos grande facilidade em perceber as desarmonias no procedimento do irmão. E não paramos ali: tecemos, em torno do
episódio, considerações tais que aumentam tremendamente os fatos, carregam as
cores, agravam as responsabilidades, quando não avançamos mais e penetramos no
campo do comentário fantasioso e malicioso, transformando em palavras o que os
nossos olhos mal viram, ou nem viram, aparentando certeza o que apenas era
hipótese, incendiando a fantasia de nossos ouvintes e destruindo neles a imagem
de nosso irmão. Ver é um dom, mas é
também um perigo. Cabe ao proprietário
fazer dele o uso segundo a vontade do Pai que o dotou de tão magnífica
prerrogativa.
2. CISCO:
originariamente significa o pó de carvão, portanto algo de pequeno,
insignificante, difícil de ser percebido a olho nu, que passa despercebido, que
muito esforço para ser notado. Nosso
Senhor refere-se à capacidade d homem de perceber elementos insignificantes nas
atitudes do próximo, manchas mínimas nas suas vestes, desproporções quase
inexistentes em seus comportamentos.
Cisco coloca o acento na minusculidade da coisa ou do fato. Nossa maldade se transforma em lente de
aumento: um grãozinho de areia transforma-se numa rocha, uma formiga vira um
elefante, uma semente ganha a forma de um celeiro, uma folha deita sombras como
se fora um carvalho, uma palavra se torna um discurso, um gesto uma
batalha. Tudo o que de errado o outro
faz, nosso campo visual o capta aumentando.
Parece que a descoberta de defeitos nos outros consola a existência de
defeitos em nós e sua proporção exagerada esmaga o tamanho dos nossos. Neste particular, Cristo nos analisou muito
finamente: somos exímios catadores dos mínimos defeitos que empanam o brilho do
olhar do próximo e, ao vê-los, geramos em nós a convicção de que são bem
maiores do que na realidade. Olho
perigoso o nosso!
3. TRAVE: viga de
madeira, barrote, cada uma das barras que compõem a baliza do gol. Algo, pois, realmente grande, perceptível,
semelhante a um tronco de árvore, que pode ser visto com a maior facilidade, à
distância, sem auxílio de instrumento algum.
A comparação de Cristo é clara: em nós existem defeitos grandes, falhas
de proporções gigantescas, que prejudicam nosso desenvolvimento de homens e de
cristãos. Mas nosso olhar preocupado com
captar defeitos alheios, embora pequenos, não se apercebe das grandes
imperfeições que temos, entre elas, justamente, o vício de garimpar defeitos em
terreno alheio Na medida em que gasto
minha capacidade de visão no cisco do olho fraterno, passa-me despercebida a
trave que cobre todo o meu globo ocular.
Erroneamente acredito que vasculhar a propriedade alheia é menos
comprometedor do que rastelar meu terreno eivado de ervas daninhas, que crescem
em forma de floresta. Gritamos alarmados
que a casa do vizinho está pegando fogo, quando a nossa está praticamente
devorada pelas chamas. Lastimamos que o
outro está descuidando do jardim, quando o nosso já virou deserto. É estranho, mas doloroso: a imperfeição do
outro grita mais forte que a nossa.
Somos atingidos pela sombra do outro, sem perceber a escuridão que
deitamos em torno de nós. Cristo nos
adverte. E toda advertência é uma
graça. Troquemos o foco de nosso olhar. Dirijamos este olhar para outra direção. Voltemo-lo para dentro de nós mesmos e
teremos paisagens suficientes para entretê-lo.
Assim, corrigido o olhar na direção de nós mesmos, teremos um olhar na
direção do outro. Teremos estabelecido o
equilíbrio. E equilíbrio, neste
particular, é caridade.
4 OLHO: os olhos, costuma-se dizer, são
as janelas da alma. Pela janela entra a
luz e o ar. Pelos olhos entra o mundo em
nós. Por isso, pede Cristo que nosso
olho seja puro, como um filtro límpido, para que tudo quanto ele captar seja
puro ou purificado e como tal instalado dentro de nós. Mas... pela janela também saem o ar e a
luz. Pelo olho deixamos ver nossa
alma. Daí o significado do olhar: olhar
franco, olhar inocente, olhar puro, olhar sincero, olhar tranquilo ou olhar
perturbado, olhar dúbio, olhar assassino, olhar que se desvia. A linguagem do olhar é um passo além da
fala. Ele traduz aquilo que a palavra
não consegue expressar. Lembremos o
olhar de Cristo ensanguentado e machucado fixando-se em Pedro: nenhuma palavra
teria realizado na alma do covarde apóstolo tamanha transformação. Foi este olhar profundo que lhe mostrou a
hediondez de sua situação. Nenhuma
recriminação teria desencadeado tantas lágrimas. Aos pés da Cruz, Maria não falou, apenas
olhou. Palavra alguma, porém, teria
infundido tamanha coragem no Filho, como aquele olhar dolorido, mas
decidido. Olhemos para o olho do irmão,
à busca de uma alegria para nos encantar, de um encorajamento a nos
animar. De uma dor que possamos aliviar,
de uma necessidade que possamos satisfazer.
À medida que deixarmos de procurar ciscos no olho do irmão, cairão as
traves obnubilam o nosso.
Extraído do Livro: A Semente se fez árvore - Frei Hugo Baggio,OFM - Ed. Vozes - Petrópolis 1980
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