Do Monte Alverne à irmã morte corporal
Os dois últimos anos da vida de Francisco foram um Calvário!
Os problemas na Ordem continuam. Sobretudo, com divisões internas. Vimos há
pouco como ele passou a comungar mais profundamente com o mistério de Deus pela
prática da misericórdia e da paciência com os pecados dos frades. Francisco se
retira no Monte Alverne. Lá, conversa com Deus, lembra-se do Crucificado e,
assim, mergulha mais profundamente em seu mistério. Isto é, decide continuar
amando seus irmãos, mesmo assim. E o que acontece? Vemo-lo totalmente
identificado com Aquele que, na cruz, entregou a própria vida pelos amigos.
Vemo-lo de tal maneira em comunhão com o mistério deste amor solidário e
misericordioso de Deus que, de repente, as próprias chagas do seu Senhor lhe
aparecem no corpo. Hoje se diria: A paixão de Cristo se somatiza na paixão de
Francisco. Em outras palavras, escreve Alexander Gerken:
“O que mais crucificou Francisco durante os dois anos
anteriores à sua morte foi a divisão da Ordem, que tinha crescido demais até
para ele. Sofria vendo a desunião existente nela e como muitos de seus irmãos
não podiam ou até não queriam seguir o ideal primitivo. O fato de não
abandoná-los, de amá-los, e amá-los em sua fragilidade, ‘até a cruz’,constitui
o conteúdo e a causa de sua experiência da cruz no Monte Alverne. O sofrimento
pela Ordem lhe gravou as chagas e, a partir de seu amor crente, soube que eram
as chagas do Crucificado, que não reteve para si sua própria vida, mas a
entregou por todos nós”.
Francisco se sente realmente mergulhado no “segredo” de Deus,
seu altíssimo Senhor e Rei, único Bem, referencial único para a construção de
uma autêntica fraternidade humana. E, nesta experiência de comunhão total com o
modo de ser do seu Senhor, consola seu inseparável companheiro Frei Leão, compondo
este maravilhoso Hino de Louvor a Deus:
“Vós sois o santo Senhor Deus único, que operais maravilhas!
Vós sois o Forte. Vós sois o Grande. Vós sois o Altíssimo. Vós sois o Rei
onipotente, santo Pai, Rei do céu e da terra. Vós sois o Trino e Uno, Senhor e
Deus, Bem universal. Vós sois o Bem, o Bem universal, o sumo Bem, Senhor e Deus
vivo e verdadeiro. Vós sois a delícia do amor. Vós sois a Sabedoria. Vós sois a
Humildade. Vós sois a Paciência. Vós sois a Segurança. Vós sois o Descanso. Vós
sois a Alegria e Júbilo. Vós sois a Justiça e a Temperança. Vós sois a
plenitude da Riqueza…”
Daí em diante, a vida de Francisco foi de atrozes
sofrimentos, também corporais. Vivia esmagado por toda sorte de doenças e
provações. Mas, ao mesmo tempo, provava incomparável alegria, pois, desse
jeito, sentia-se mais e mais em comunhão com seu Senhor crucificado e, neste
Senhor, em comunhão com o “coração” de Deus mesmo e, no “coração” de Deus, em
comunhão com todos os crucificados da sociedade e todas as criaturas… Por isso,
como sempre fora em sua caminhada de contínua conversão, Francisco canta e
convida a cantar a grandeza infinita do amor de Deus. Desse Deus que “quis
estar com os seres perdidos, os foras da lei, os publicanos e os pecadores”,
que “conviveu com eles e sentou-se à sua mesa”. Desse Deus que “por fim morreu
com eles a morte dos condenados. O Evangelho era esta realidade inaudita: a
revelação de um amor divino que nada de humano justifica e que se oferece
prioritariamente aos que não podem se prevalecer nem da estima do mundo, nem
das posições que ocupam na sociedade, nem de sua riqueza, nem de seu sucesso
social, nem mesmo de seus méritos ou de suas virtudes, mas que esperam tudo
unicamente da graça de Deus”.
Francisco canta e convida a cantar. Sua vida transforma-se em
poesia, porque expressa o sonho mais profundo do ser humano e de Deus, sonho de
fraternidade universal. Compõe o famoso Cântico das Criaturas, “o canto de um
homem que, durante toda sua vida, trabalhou, lutou, sofreu para que houvesse um
pouco mais de fraternidade entre os homens e para que aparecesse, enfim, na
sociedade de seu tempo, a humanidade de Deus”. A partir da comunhão profunda
com esta “humanidade de Deus”, é que Francisco e seus companheiros “aprenderam
a olhar os seres e as coisas, ingênua e fraternalmente, com simplicidade e
cortesia. Deixaram de vê-los sob o ângulo de seu valor de venda, para
considerá-los como criaturas de Deus, dignos de atenção em si mesmos. Assim
descobriram o esplendor do mundo, o esplendor das coisas simples. Seu olhar se
deteve, maravilhado, nas realidades mais humildes, mais cotidianas, que eram
companheiras de sua vida de pobres: a luz, a água, o fogo, o vento, a terra.
Sim, a terra de todos os dias, a terra mãe. Como era bela a seus olhos esta
terra, vista para além de toda ambição e de toda vontade de poder! Deixava de
ser um campo de luta para tornar-se o lugar da grande fraternidade dos seres:
‘Nossa irmã a Mãe Terra”.
Francisco canta e convida a cantar e celebrar o Amor criador
e redentor, sobretudo quando percebe aproximar-se o momento de sua máxima
comunhão com o mistério do Deus pobre e solidário, o momento da morte. O
momento da máxima experiência de pobreza, pois aí Francisco fará de verdade a
experiência de não ser mais dono de nada, nem mesmo da vida. Francisco canta e
dá as boas-vindas a esta que ele chama também de “irmã”. Ela é para ele “a
porta da vida”. E para celebrar a chegada deste momento de comunhão absoluta
com a Pobreza, pede inclusive que deixem seu corpo despido sobre o chão por algum
tempo. “E assim chegou a hora”, escreve Tomás de Celano, concluindo: “Tendo
completado em si mesmo todos os mistérios de Cristo, voou feliz para Deus”. E
Boaventura: “Cumpridos, enfim, todos os
desígnios de Deus em Francisco, sua alma santíssima livrou-se da carne para ser
absorvida no abismo da claridade de Deus, e dormiu tranquilamente no Senhor”.
Realiza-se nele o que havia pedido, parafraseando a oração do Pai-Nosso. “Venha a nós o vosso reino: para que reineis
em nós por vossa graça e nos deixeis entrar no vosso reino, onde veremos a vós
mesmo sem véu, teremos o amor perfeito a vós, a beatífica comunhão convosco, a
fruição de vossa essência”.
Texto do livro “Herança Franciscana”, do capítulo “A
experiência de Comunhão com o Mistério de Deus em Francisco de Assis”, de Frei
José Ariovaldo da Silva, ofm.Fonte: http://www.franciscanos.org.br
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